terça-feira, março 16, 2010

O Caderno

“Por favor pede à mãe que me deixe entrar.” - já muitas eram as noites em que ouvia esta mesma frase. Olhei novamente para o meu pequeno irmão, solitário e cabisbaixo, encolhido no interior do nosso velho sotão, junto à porta. De todas as vezes que fui ter com ele nunca por um segundo consegui obter um único momento em que me olhasse directamente nos olhos. Os seus olhos encontravam-se sempre virados para o chão, como se tivesse vergonha de me encarar de frente. Mais uma vez se encontrava dobrado com as pernas flectidas e os braços cruzados a tocar nos ombros. Por mais que tentasse olhar para além da sua pequena figura, nada mais conseguia ver do que escuridão, a mais pura escuridão imaginável. O ar permanecia sempre seco, mesmo nas mais húmidas noites de Inverno. O silêncio vindo do outro lado da porta era assombrante, daquele tipo de silêncio que apenas obtemos quando somos muito novos e estamos sozinhos no escuro do nosso quarto. As suas breves palavras, proferidas num volume muito baixo e num tom que indicava medo, eram a única coisa que conseguia ouvir. A escuridão e o silêncio assustavam-me, mas a sua presença e a sua solidão compeliam-me a voltar ao mesmo sítio todas as noites. Por várias vezes o tentei atrair para o lado de cá, mas apercebia-me da sua recusa através de um leve abanar de cabeça, do qual normalmente se seguia a mesma frase: “Por favor pede à mãe que me deixe entrar.”. Numa dessas frias noites de Inverno em que a solidão se espalha e as palavras que dirigimos uns aos outros não encontram uma verdadeira correspondência, tentei atrair a mãe ao sotão. Encontrei-a a descascar batatas no lava-loiças da cozinha com um cigarro mal aceso na boca, o cabelo mal arranjado e um choro nervoso que por muito que tentasse não conseguia disfarçar. Sempre que se apercebia da minha presença esfregava os olhos numa tentativa de limpar as lágrimas pois nunca quis partilhar a sua escuridão comigo e, por isso, nunca lhe consegui levar um pouco de luz à sua tristeza. O modo pouco subtil em que tentava disfarçar esses momentos deixavam-me com receio de lhe dirigir qualquer palavra sobre o meu irmão, mas nessa noite decidi insistir. Disse-lhe que precisava de vir comigo até à porta do sotão, sem apontar a essa acção uma razão específica. Naturalmente não percebeu a razão do meu pedido e pediu-me que me fosse deitar para o meu quarto - “Já está a ficar tarde...” - disse, enquanto se virou de novo para o lava-loiças e esfregou mais uma vez os olhos. Pensei em inventar uma qualquer desculpa para a atrair para perto do local onde várias vezes falava com o meu irmão, mas não consegui arranjar coragem para lhe mentir. Falhei na minha tentativa, tal como expliquei ao meu irmão. “Não vale a pena,” - respondeu ele - “se ela viesse eu não estaria cá.”. Essas últimas palavras deixaram-me um pouco irritada, abri um pouco os olhos e berrei-lhe: “Mas porquê?”. Demorou um pouco a responder, não estava habituado a que lhe falasse alto, nunca precisei de o fazer. No entanto, respondeu-me passados uns momentos: “Porque ela não compreenderia.”.

Apesar da minha tenra idade, sempre me considerei uma rapariga matura. Apesar de ser ainda uma criança e de me portar como tal a maior parte das vezes, foram várias as noites em que me deitava e ficava a observar a noite por detrás da janela do meu quarto, a janela em que eu deixava entrar toda a beleza das estrelas para o meu pequeno cantinho. Enquanto observava a noite, pensava várias vezes na anatomia do momento. O momento, aquele pedaço de tempo em que o mundo se mostra à frente dos nossos olhos, com um ciclo de vida muito curto mas marcante e para o qual apenas a memória serve de registo para a infinidade de sensações que captamos. Triste destino temos, pensava, que faz com que essas breves maravilhas estejam ligadas a algo tão ténue como a memória. “Tenta viver cada momento como se fosse o último” - esta frase sempre me pareceu cliché, mas foi uma das últimas que ouvi da boca do meu avô antes de morrer, e agora que penso em todas os momentos que passei com o meu pequeno irmão, reconheço-lhe toda a verdade existente no mundo.

Em várias dessas noites sem sono olho para a pequena moldura que está em cima da mesinha de cabeceira castanha do lado esquerdo da cama e passo horas a fio a encarar o alegre sorriso na cara do meu irmão captado no momento em que a fotografia foi tirada. Na fotografia consigo ver perfeitamente o baloiço de madeira que ainda hoje está no nosso jardim. Foi nesse baloiço que o meu irmão estava na última vez que o vi, numa anormalmente enevoada tarde de Agosto. Nessa tarde tinha-me fartado de estar em casa e levei o meu irmão lá para fora, coloquei-o no baloiço e empurrei-o durante algum tempo. Ouvi a voz da mãe a gritar-me do interior da casa uma frase que ainda hoje me arrependo de não ter desobedecido: “Sofia vem ajudar-me a preparar a mesa.”. Íamos receber visitas nessa noite e como tal a mãe estava atarefada em preparar a casa para a ocasião, como sempre fazia. Desses breves momentos pouco me lembro, na verdade, aquilo que realmente me lembro consiste em apenas dois momentos: o primeiro quando disse ao meu irmão que não demorava e vi a sua cara de aborrecido por eu ter parado de empurrar o baloiço, o segundo quando voltei e vi o baloiço vazio.

Os meses seguintes foram nada mais que um grito no vazio, um nada absoluto. No meio do nada estava a minha mãe, mas não como figura de destaque, antes sim como parte integrante desse nada, uma sombra de uma árvore morta que já não reflecte o esplendor de antigamente. Nesses meses confirmei as minhas teorias acerca do fenómeno que é o momento: a sua realidade vive apenas da memória. No entanto a memória que possuo dessa altura é, apenas e só, negra.

“Por favor pede à mãe que me deixe entrar.” - ouvi mais uma vez vindo do escuro sotão. Dessa vez não aguentei mais e fechei a porta, fugindo de seguida em lágrimas para o meu quarto. Nessa noite, tal como em muitas outras, a insónia teimava em não me largar. Fitava o escuro da noite, como sempre, e pensava no pedido do meu irmão, o qual que por muito que tentasse não lhe conseguia atribuir um significado nem uma resolução. As estrelas fitavam-me com pouco brilho e não conseguia ouvir os aconchegantes sons da noite, apenas o estalar das velhas madeiras do chão do quarto. Há noites que teimam em nunca acabar, tal como há escuridão que teima em não desaparecer.

A manhã seguinte acordou ensolarada, de uma forma que já não via há bastante tempo. Ao descer as escadas apercebi-me que a mãe estava deitada sobre o sofá e tentei passar despercebida como normalmente fazia. Ao passar por ela lancei um breve olhar para os seus olhos e reparei que algo estava diferente nesse dia. Apesar das lágrimas lhe continuarem a escorrer pela cara, a sua expressão já não transmitia o vazio que me habituara a reconhecer, pelo contrário, apercebi-me que ela estava a sorrir. Vi que segurava uma espécie de livro na mão, mas não consegui perceber qual era a capa do mesmo, porém não tive coragem de lhe perguntar do que se tratava. Decidi então esconder-me na cozinha e esperar por uma oportunidade para desvendar o que se passava. Passados uns minutos ouvi os seus passos a subir as escadas e avancei para o local com esperança que o pequeno livro tivesse ficado para trás. Felizmente encontrei o livro semi-aberto em cima da curta mesa de vidro que se encontra em frente do sofá. Alcancei-o e reparei que realmente era-me impossível reconhecer qualquer capa pois tratava-se apenas de um pequeno caderno forrado a amarelo, com uma pequena etiqueta na frente que continha um título escrito à mão: “Caderno de jogos”. Abri-o e deparei com um conjunto de fotografias do meu irmão a brincar e de pequenas descrições que acompanhavam cada fotografia. Cada um desses textos parecia descrever várias brincadeiras que a minha mãe e o meu irmão tinham partilhado e deduzi que as fotografias tivessem sito tiradas por ela durante essas actividades. Houve uma página que me chamou especial atenção e não consegui evitar um esboçar de admiração ao olhar para ela: tratava-se de uma página que continha uma fotografia do meu irmão dentro de uma grande caixa de cartão em que a descrição que a acompanhava, escrita a azul ao contrário das anteriores que eram escritas a negro, dizia: “Jogo da Porta: Para jogar este jogo são precisas duas pessoas e uma caixa, que simula uma casa. A primeira pessoa deve estar dentro da caixa e deve também esperar que a segunda pessoa bata à porta. A pessoa no interior da casa só poderá deixar a outra entrar se esta lhe pedir “por favor”, caso contrário a segunda pessoa ficará do lado de fora da caixa.”. Apercebi-me então que a minha mãe olhava para mim por cima dos meus ombros e sem que fosse preciso perguntar-lhe nada disse-me: “Encontrei esse caderno no sotão depois de acordar. É o caderno de jogos em que eu e o teu irmão costumávamos apontar as nossas brincadeiras enquanto tu não estavas em casa. Era o nosso pequeno segredo, o tesouro, como ele lhe chamava...” - afirmou a mãe enquanto limpava os olhos - “Esse jogo que estás a ler agora era o seu preferido, ele adorava bater à porta vezes e vezes sem conta sem pedir “por favor”, como que se por traquinice me quisesse deixar zangada, mas depois lá me pedia: “Por favor mãe deixa-me entrar.” E a sorrir lá entrava na casa, nesta simples caixa onde chegámos a estar horas a fio a inventar outros jogos.”. Depois da explicação e pela primeira vez em muito tempo abracei a minha mãe que, tal como eu, chorava com um largo sorriso nos lábios. É estranha e reconfortante a sensação que o relembrar de um momento nos pode trazer. É no entanto ainda mais reconfortante e acarecedora a sensação de voltar a saborear esse momento nem que seja na nossa memória.

Esse dia passou luminoso, a escuridão já não existia. Era como se de repente alguém tivesse rebentado as paredes e os raios de sol chegassem a todos os cantos da nossa casa. À noite dirigi-me de novo para o sotão, mas não consegui encontrar o meu irmão. Agora, o sotão já não me parecia tão escuro e apesar da pouca luz que o local recebia consegui vislumbrar os vários móveis apodrecidos que estavam ali guardados há anos. Sorri e dirigi-me para o quarto, as insónias pareciam ter dado lugar a uma calma e acolhedora tranquilidade que me deram vontade de dormir ao deitar-me na cama. No entanto, antes de adormecer, olhei ainda pela janela e recebi o intenso brilho das estrelas no meu quarto e, ao fechar os olhos, ouvi a imensidão de sons que a noite tinha para me oferecer.

Sem comentários: