terça-feira, dezembro 26, 2006

O Cabrão Safou-se


O cabrão safou-se. O cabrão safava-se sempre. Mesmo antes, quando brincávamos na lama. Eu, ele, a Dora, os três a brincar na lama. Naquelas intermináveis tardes de Verão em que o Sol se cruzava com a totalidade e a totalidade se cruzava connosco. A mãe Luísa chamava-nos, mas nós não íamos. Ficávamos lá os três na lama, no Sol e na totalidade… Pelo menos até a mãe nos ir buscar, irritada, com os seus gordos braços apoiados nas ancas, a tentar imitar a posição de zangada da sua mãe. Mandou-nos para dentro de casa, onde eu e Dora pagávamos pelas espadas e escudos de uma vida de combate. E ele, com a sua face de anjo e cabelo louro de gladiador, safou-se. O cabrão safou-se. Ficou a olhar para nós, a sorrir. “Ele ainda é muito novo”, dizia a mãe. “Ainda não está na idade…”. O cabrão safava-se sempre.

E depois, quando estávamos os três no baloiço. Naquele baloiço tão bem pregado ao chão e tão bem pregado na memória, naquela que o vento e a chuva não levam. O baloiço passeava-se connosco, não como o senhor que leva a sua senhora a passear, mas sim como o sentimento sério do pai que leva a filha a dar a sua primeira volta pelo mundo. A campainha tocou. Uma, duas, três vezes… Nós continuámos a saborear o passeio com as estrelas e as nuvens, despreocupados, inocentes, crianças… E então a professora Luísa fartou-se de esperar. A rocha cedeu, deu lugar ao vazio. Pegou-nos aos dois, à Dora e a mim, pelas orelhas, a ele não. O cabrão safou-se. “Ele não é da tua turma”, explicou a Dona Luísa. “A professora dele que decida.”. O cabrão safava-se sempre.

E também alguns anos mais tarde, naquela noite de Verão, na praia. Na noite em que a água e a areia emanavam a brisa dos primeiros anos, a brisa do tudo e do nada, enfim, a brisa de Verão… Ele encontrou-a a ela, pequena mas bonita. Como a pequena concha que encontramos soterrada na areia molhada, a concha que primeiro nos aleijou o pé mas que depois guardamos na primeira prateleira do nosso quarto. Eu e Dora, gémeos de nascença e coração, observámos e relembrámos o quadro que se nos deparou: a praia, as rochas, a areia, ele e a pequena Luísa. A noite transformada na troca, a troca transformada em toda a vida. E depois da noite, o susto. O susto de uma só interrogação: estaria a criação a congeminar-se no ventre da pequena e bonita Luísa? Mas o cabrão safou-se. E até se safou com a bênção da mãe Luísa. O aborto foi dispendioso e perigoso, mas aconteceu. E ele, filho do segundo marido da nossa mãe, não foi sequer repreendido. O cabrão safava-se sempre.

Mas tudo isto foi esquecido, tudo foi atirado para trás, pois o destino havia esperado para lhe entregar algo ainda mais importante.

Há um ano atrás, na empresa. Na minha empresa, na empresa na qual trabalhava há já quinze anos, perdi o meu lugar, para ele. Não bastou ter-me morfoseiado na dedicação e devoção que na ficção encontramos em famílias e locais sofredores e sagrados. Nada disso bastou, a única coisa que basta é a sua presença, irritante e pouco discreta, como se fosse o ruir de uma montanha na qual só eu era atingido. O cabrão safou-se. Roubou-me o lugar. “Ele é mais eficiente”, desculpava-se a chefe Luísa. “É bom introduzir bom sangue jovem de vez em quando”. Mas só eu sabia que a eficiência dependia da condicionalidade, daqueles muitos “e se” da vida. O cabrão safava-se sempre.

E no final, quando lhe dei o tiro, ele tremeu, tremeu e caiu ao chão. Quando desisti de escalar a montanha e decidi deixar-me cair até ao chão: dei-lhe um tiro. A mãe Luísa já tinha morrido há muito tempo. Dora, minha metade e meu tudo, também já desaparecera com o maldito vício da nicotina. Eu, sozinho e desamparado, fiz aquilo que há muito pensara fazer, e que também outras tantas vezes tinha decidido fazer, mas nessas faltou-me a coragem. No entanto, desta vez, não abri nenhuma porta e não me escondi por detrás de nenhum armário. Não, desta vez percorri todo o corredor, sem nenhum tapete vermelho por baixo, é certo. Mas também nunca tivera nenhum. Fui descoberto, julgado e atirado para a cadeia, onde não resisti. Dois meses depois de ter entrado naquele antro de imundice, morri. Morri de solidão, morri de saudades, por Dora. Mas acima de tudo, morri de rancor para com Ele. Como, pensei eu, como não tinha eu pensado nisso? Como não pensei que a minha morte iria ser uma morte esquecida, uma morte desejada, enquanto que a sua morte seria uma morte muito relembrada, uma morte em hegemonia? O cabrão safou-se. O cabrão safava-se sempre.

1 comentário:

Ana Margarida Cinza disse...

ha cabrões que definitivamente se safam sempre!...

que nos rebaixam, nos inferiorizam, nos roubam estatutos só porque nasceram com o "cu virado para a lua"..

há cabrões que se safam sempre e nós ficamos a morrer lentamente por isso...

gostei da perspectiva verídica e do tema :)

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