domingo, julho 23, 2006

A Torre da Igreja

Era por volta das sete e meia da tarde que a velha torre da igreja alcançava o seu mais esplendoroso encanto. Era por essa hora que o Sol celebrava o fim do dia com um memorável cor-de-laranja que inundava os céus, um belo pano de fundo para a tela que era sublimemente preenchida com aquela torre. Desde que me lembro de existir que observo atento e calmo no meu pequeno quintal todos os traços daquele enigmático edifício. Conheço o seu aspecto melhor do que me conheço a mim. Sou até capaz de olhar para o céu, observar os pássaros que passam e ditar, pormenor a pormenor, os elementos que constituem os seus dois sinos idênticos, enclausurados numa espécie de estrutura de paredes brancas ladeadas por mármore, com lindos pormenores de pedra a imitar anjos por cima dessa estrutura. Ao centro, uma enorme cruz mostra-se altiva ao mundo, estando no entanto um pouco mais baixa do que os sinos. Por detrás da cruz consigo perceber que se estende uma espécie de terraço que acaba num muito mal tratado telhado de velhas telhas.

Certo dia pensei ter curiosidade suficiente para entrar na igreja e subir até à sua torre, mas desisti da ideia pois pareceu-me que iria deixar de ver nela o encanto que sempre lhe reconheci.

Aquilo que no entanto mais me atraía na torre era o toque dos seus sinos que só tocavam pela manhã. Não eram de forma alguma toques de ordem mas sim de encorajamento, como se no momento em que os sinos soavam a torre se separasse do resto da igreja, um elemento sozinho e independente capaz de acordar todos com um som de esperança.

Numa dessas manhãs, ao acordar, acordei muito mais tarde do que habitual. Estranhei o facto de não ter acordado ao toque dos sinos e desci as escadas de encontro à minha avó. Perguntei-lhe se os sinos tinham tocado naquela manhã, ao que ela respondeu – Sim, eu pelo menos ouvi o seu toque. Intriguei-me e dirigi-me até ao quintal. Observei a torre, constatei que aparentemente nada se passava com os sinos e decidi esperar pelo dia seguinte.

Porém nada aconteceu nas manhãs dos meses seguintes. Irritado, obriguei-me a ir à igreja e subir até à torre. À porta encontrei a minha avó sentada num degrau. Perguntou-me se ia subir, ao que eu confirmei com a cabeça. Olhou para mim de cima para baixo, levou a mão ao bolso e retirou um cordel que me entregou, abandonando o local de seguida. Olhei estupefacto para o objecto que não passava de um pequeno e banal pedaço de cordel e coloquei-o também no bolso.

Entrei na igreja e dirigi-me prontamente para o insignificante corredor que dava para as escadas. Iniciei a subida de um largo número de degraus de pedra ladeadas de paredes brancas nas quais avistava de vez em quando algumas cavidades que continham figuras religiosas. Após subir cerca de um minuto deparei-me com uma cavidade onde vivia um pequeno e aparentemente perdido pássaro. Seguidamente, cheguei a um corredor que me pareceu muito semelhante ao corredor da entrada. Passei o corredor e voltei a encontrar mais escadas. Pasmado segui em frente e voltei a passar por várias cavidades com figuras religiosas e por um pequeno pássaro que vivia numa delas. Desviei o olhar do pássaro e choquei-me ao deparar com outro corredor idêntico ao último. Mentalmente desamparado decidi deixar no local um dos meus sapatos. Desatei a correr e após muitas escadas e cavidades nas paredes cheguei ao corredor onde encontrei aquilo que já esperava encontrar: o meu sapato. “Estarei a andar em círculos?”- pensei eu. Mas coloquei de lado essa ideia pois além de aquela ser a única entrada possível para a torre era também impossível voltar para trás quando o caminho apenas me guiava num sentido: para cima!

Voltei para trás e desnorteado verifiquei que me encontrava na entrada da igreja. Decidi sentar-me um pouco e descansar no pequeno degrau onde encontrara a minha avó, onde acabei por adormecer.

Acordei algumas horas mais tarde por volta da hora em que o Sol inundava o céu de cor-de-laranja e decidi voltar a tentar. Entrei no corredor que dava acesso às escadas e continuei. Ao subir olhava freneticamente para as paredes à procura de respostas até que cheguei ao fim da subida onde encontrei a mesma ave no mesmo sítio. Observei atentamente a cavidade e ocorreu-me que era a única cavidade diferente de todas as outras. Num impulso peguei suavemente no pássaro e continuei. Cheguei novamente a um corredor que depressa reparei ser diferente dos anteriores. Atravessei-o e cheguei finalmente ao telhado.

Olhei para o céu ainda laranja e subi os últimos degraus que me levavam a um nível acima da enorme cruz, ao nível dos sinos. Pousada sobre as minhas mão, o pequeno animal soltou pela primeira vez um fraco som, saltando de seguida para o chão da torre. Caminhei até um dos sinos e tentei empurrá-lo, obtendo como resposta o simples silêncio. Tentei fazer o mesmo ao outro sino, o qual me enviou idêntica resposta.

Repentinamente, lembrei-me de algo que provaria ser a chave da questão: os sinos tocavam sempre juntos. Levei a mão ao bolso e retirei o pequeno pedaço de cordel que me fora entregue pela minha avó. Comecei a desenrolá-lo e o minúsculo cordel enrolado depressa se tornou num enorme cordel que estendido atravessava toda a torre, o que não me surpreendeu. Atei-o ao primeiro sino e fiz o mesmo ao segundo. Puxei-o e tal como esperava ambos os sinos tocaram, lançando o grito de esperança a quem os quisesse ouvir. Abandonei a torre e voltei para casa, deixando-os tocar sozinhos e com o aproximar do final da tarde deixaram de lançar o seu som. Nessa noite pude finalmente dormir bem, sabendo que acordaria com o som vindo da torre da igreja pela manhã, sonhando ao mesmo tempo que o pequeno pássaro espalhava o seu grito de verdade pela noite.

1 comentário:

Ana Margarida Cinza disse...

"Certo dia pensei ter curiosidade suficiente para entrar na igreja e subir até à sua torre, mas desisti da ideia pois pareceu-me que iria deixar de ver nela o encanto que sempre lhe reconheci."

Há certas coisas nas nossas vidas qye só têm encanto ao serem observadas e estudadas de longe, onde só nós possamos descobrir a sua genialidade e perfeição..No entanto, quando algo de mal pareceu aproximar-se, ele teve de ir à procura da sua perfeição, daquele tocar de sinos que ja fazia parte dele próprio, daquele velho hábito impregnado na sua pele e no seu espirito, revelando a coragem de nao cessar as suas buscas que se fizeram notar vãs inicialmente...

Todo este texto poderia ser uma metáfora (nao será mesmo?)..Os teus textos fazem isso mesmo:tentar interpretar as coisas de prismas diferentes, mesmo perante a sua simplicidade e a suposta transparência e objectividade inicial...

Parabéns :)