sábado, abril 01, 2006

O cisne e a Estrela


Pensei nele toda a semana, nada me tirava da cabeça o seu rosto. Desviava-me dos carros que me atrasavam a pressa encandeada pelos luminosos e incandescentes pirilampos da cidade. Desde que o seu estado de saúde começara a deteriorar-se que nada do que fazia tinha sentido. O meu pequeno carro reclamava pela desatenção com que passei por todas as imperfeições da estrada. Entrei num pequeno túnel escuro e vazio que me deu oportunidade de pisar o acelerador, mas algo correu mal. O carro abrandou a velocidade, olhei para o nível de gasolina e verifiquei que estava no fim. Consegui no entanto encostá-lo à berma e parei-o. Deu-me ainda um último suspiro e adormeceu. Reclinei-me no banco e coloquei as mãos na cabeça. Não consegui evitar a desesperada queda de algumas lágrimas pela face. Abri a porta e desatei a correr à procura de... algo. Ao sair do túnel fui novamente inundada pela irritante luz que me cegava, atravessei um pequeno beco e fui de encontro a uma enorme praça toda pintada de cinzento. Avistei um táxi no fundo da praça e apressei-me ao seu encontro. Entrei e dei as indicações necessárias ao taxista. Sentei-me direita no banco e olhei pela janela do táxi para uma pequena rapariga que observava os vendedores de fruta que inundavam o lugar que parecia albergar uma espécie de festival. Voltei a não conseguir aguentar o choro enquanto abandonávamos o lugar.
Pelocaminho recordei na minha mente a última semana que naquele dia findava. Foi na segunda-feira que abri a porta da sua velha e modesta casa e me supreendi pelo silêncioque incomodava a outrora feliz e barulhenta casa. O soalho rangia enervadamente à medida que atravessava o pequeno corredor que conduzia para a porta do seu quarto. Bati uma vez, não respondeu. Bati uma segunda vez, recebi idêntica resposta. Empurrei com força a teimosa porta e encontrei-o estendido sobre o seu largo e forrado de vermelho tapete. Não falava, não mexia, temi o pior. Corri até ao telefone e marquei o número dos bombeiros. Número incorrecto, "Foda-se!". Voltei a ligar mais calmamente e expliquei a situação. "Chegaremos aí em cinco minutos.", respondeu a grave voz do outro lado da linha.
Foi então que o acompanhei durante três dias no hospital, sem ouvir uma única vez o agradável som da sua boca, daqueles sons que comparamos facilmente às intermináveis noites de Verão. Sentada num banco ao lado da sua cama, recordei o dia em que o conheci, no jardim. Encontrava-se sentado num banco, de cabeça erguida e braços caídos. Eu passeava calmamente quando, por acaso, ouvi uma doce voz a cantarolar uma música que me despertou a atenção. Ouvi:
"Menina não estejas triste
Um dia verás, por via da gaivota
O mundo tem mais encanto e beleza
Nos olhos de quem o vê voando"

Sentei-me a seu lado, onde fui recebida com um enorme "Olá!". Devolvi-lhe o cumprimento. Observei-o, achei nele uma estranha beleza apesar da sua notória avançada idade. Confundia-me olhar para alguém que aparentasse ser tão novo pudesse simultaneamente ser tão velho. Perguntou-me: "Posso contar-te o meu sonho?". Concordei, ao que ele respondeu: "Sabes, a única coisa que consigo ver desde há muitos são sonhos, e acredita que por vezes pode ser uma benção.". E continuou, continuou pela tarde fora a contar-me a história de um belo cisne que foi de encontro a uma estrela e a trouxe consigo para voar com ela até ao fim dos tempos. E foi assim que comecei a ir todos os dias a sua casa ouvir os sonhos que tinha para me contar.
Naquela desconfortável cadeira de hospital lembrei-me sobretudo da noite em que me contou um sonho em que avistara uma mulher que lhe despertou a atenção. A mulher não era bela, contou ele, mas tinha na cara uma bondade que tornariam fúteis o Sol e a Lua. Não a reconhecera, mas o seu olhar prendera a sua atenção. Uma semana depois, fez-me saber que tinha sonhado com ela todas as noites e que tinha-la finalmente reconhecido. "Como me pude esquecer? É a única coisa que a minha memória consegue guardar além de sonhos.". A misteriosa mulher era simplesmente a sua já há muito tempo falecida mãe. Baixou a cabeça por uns segundos e quando a voltou a erguer perguntou: "Acreditas em algo que exista para além da morte?". Respondi que não, não acreditava em vida para além da morte. "Pois, eu também não", disse ele, "mas acredito que me voltarei a reunir com ela, com a minha mãe. Talvez, talvez...".
Na quinta-feira acordei e vi que adormecera na cadeira do hospital mais uma vez. Levantei-me e olhei sorrateiramente para ele, continuava imóvel. Disseram-me que não valia a pena estar ali, era melhor ir embora e voltar me poucos dias. Olhei para ele mais uma vez e saí do infeliz quarto
No Domingo, ao início da noite, recebi um telefonema do hospital noticiando que a sua situação piorara e que havia uma forte probabilidade da sua vida se desvanecer naquele dia. Corri para o carro e parti...
Pela janela do táxi pude observar que tinha finalmente chegado ao hospital. Paguei ao motorista e corri o mais rápida que pude pelas escadas até à porta de entrada. Lá dentro, fui socorrida por uma enfermeira vestida de azul-claro que me indicou o caminho até às urgências. Ao entrar na sala, encontrei-o parado, a esboçar um leve sorriso enquanto o médico, do lado de lá da cama, me abanava a cabeça num sinal de pura impotência. Peguei na sua mão e fiquei a olhá-lo. Ao sentir a minha mão na dele, apertou-me com força e sorriu mais fortemente.
Mas a força da sua mão sumiu-se, o último suspiro foi dado, o sorriso, esse continuava. Larguei a mão e sorri também, sorri com a certeza de que nos últimos dias a sua mãe lhe aparecera nos sonhos para o abraçar e levar com ela. Beijei-lhe a testa e saí. Decidi ir dar uma volta pela cidade, confortada com a certeza de que naquela noite iria sonhar com um passeio no jardim ao lado dele e de sua mãe, um passeio no qual caminhávamos juntos e alegres até ao fim dos tempos.

1 comentário:

Ana Margarida Cinza disse...

os nossos sonhos podem destruir-nos, mas pelo menos dão-nos vida!Ainda bem que "sonhaste" este post e o concretizaste!
Gostei da maneira como abordaste a morte.Algo não tão triste quanto normalmente é.
'Tás de parabéns! Gostei muito!