quarta-feira, fevereiro 01, 2006

O Vidro Embaciado

Foi num daqueles dias gélidos e solitários de Inverno que avistei pela primeira vez a figura que seria a razão da minha demência durante toda a triste estação que ainda demorava a desaparecer. Saltei da cadeira de baloiço em que me extinguia em recordações e abri sorrateiramente a janela. Olhei para ela, apaixonei-me imediatamente pelo seu resplandecente cabelo louro que reflectia um sol que não se mostrava naquela tarde. Envolvi-me na sua face, puramente branca, inocente e carinhosa. Observei os seus olhos azuis totalmente envolvidos em belos sonhos que me despertaram para uma outra vida, aquela em que eu ainda existia e sorria. O seu pequeno nariz e a sua doce boca encerravam ternamente aquilo que era uma quente recordação daquilo que sentia. Cerrei um pouco os olhos e tentei concentrar-me só nela. De repente, tudo o resto já desaparecera. Era como se eu e ela nos tivéssemos transformado naquela única gota de água que cai desajeitadamente num dia enevoado de Verão. Ela caminhava despreocupadamente pela rua, com o mundo a gritar-lhe “Sou teu!”.

Olhava fixamente para a frente, não desviava o olhar nem desacertava o seu perfeito passo. Deixei então de a ver, desapareceu do mesmo modo que apareceu, consumida no desconhecimento.

Voltei a sentar-me na cadeira, com a cabeça encostada a olhar para o tecto. Por um instante tinha-me tornado vivo de novo, experienciara por uns momentos uma pausa naquilo que era o falecimento em que a minha vida tinha caído. Senti uma breve explosão e renovação por todo o meu corpo. Aquele momento lembrou-me ou forçou-me a lembrar que o mundo não vivia ao meu ritmo, pelo contrário, continuava a inventar-se e a celebrar-se nas pequenas coisas da vida, opostamente a mim. A minha existência não tinha presente nem futuro, apenas passado. Por isso, esforçava-me a viver os meus dias nessas recordações que me mantiam são e me carregavam pelos anos sem fim.

No dia seguinte voltei a espreitar para a janela por volta da mesma hora em que a tinha encontrado. Voltei a encontrá-la, o tempo pareceu abrandar novamente à medida que os seus passos se sucediam. Passou por um pequeno grupo de pombos que pousaram na rua e que pareciam não se incomodar com a sua passagem. A perfeição é assim, é tão completa que se torna sorrateira e invisível a quem não a procura.

Deixei de a ver novamente. Encostei-me na cadeira e adormeci calmamente em paz.

Passaram então meses inteiros assim: todos os dias à mesma hora espreitava por entre a janela para a ver passar. Todos os dias a deixava entrar no meu mundo no qual só ela existia e onde ela própria se tornava no meu universo pessoal, no meu tudo.

E aproximava-se o fim do Inverno. Algo estranho me ecoava na cabeça durante esses últimos dias, algo incómodo e barulhento como se uma tempestade rebentasse na minha mente. Mas no último dia de Inverno a tempestade acalmou. Foi substituída por algo muito mais grave e assustador: a certeza. Sem saber bem porquê, senti que aquele seria o último dia em que os meus insaciáveis olhos visitariam o seu corpo. Não compreendia como nem porque me atormentava aquela ideia, mas simplesmente sabia-o.

Exausto e confuso sentei-me várias horas antes do habitual na cadeira de baloiço e adormeci. Quando acordei olhei sobressaltado para o meu relógio de pulso e fiz uma terrível descoberta: já tinham passado vários minutos da hora em que ela costumava passar. Desolado, afundei-me na cadeira e uma teimosa lágrima escorreu-me pela face. Foi então que olhei para a janela e reconheci o inquietante brilho do seu cabelo. O vidro estava embaciado mas reconheci imediatamente a sua forma. Estranhamente não limpei o vidro pois achava que por alguma razão que me era alheia eu não o devesse fazer. E lá estava ela, parada como nunca tinha estado antes. Parecia que olhava na minha direcção mas não pude confirmar isso. Deixou-se estar assim por uns minutos e partiu. E assim foi, por detrás de um vidro embaciado, a última vez que eu a veria. A sua figura desfocada seria a última que lhe conheci, tornando-se na minha preferida e juntando-se às recordações que tinha da altura em que verdadeiramente vivi.

4 comentários:

Maycon disse...

Belo texto, transmite perfeitamente o clima pretendido (eu acho). Seu blog tb está em minha bookmark agora (y).

Anónimo disse...

Gostei imenso da tua página.Muito sinceramente acho que podes fazer futuro com todas as tuas virtudes.desejo-te as mais sinceras felicidades.Parabéns pelo blog,tá excelente.Beijinhos

Narcisa disse...

Adoro a maneira como escreves!

Ana Margarida Cinza disse...

"Foi substituída por algo muito mais grave e assustador: a certeza."

e é esta a afirmação que me faltava ouvir para consumar os inúmeros sentimentos que me têm consumido..tu encontraste-a!! Adorei o texto...retrata bem as quimeras que nos movem, as tendências que desenvolvemos dentro da nossa mente, como que um hábito, a que mais tarde ousamos chamar amor!!!

Belíssimo texto..gostei muito!Parabéns, uma vez mais!
Congratulações Bloguistas***