
Olhava fixamente para a frente, não desviava o olhar nem desacertava o seu perfeito passo. Deixei então de a ver, desapareceu do mesmo modo que apareceu, consumida no desconhecimento.
Voltei a sentar-me na cadeira, com a cabeça encostada a olhar para o tecto. Por um instante tinha-me tornado vivo de novo, experienciara por uns momentos uma pausa naquilo que era o falecimento em que a minha vida tinha caído. Senti uma breve explosão e renovação por todo o meu corpo. Aquele momento lembrou-me ou forçou-me a lembrar que o mundo não vivia ao meu ritmo, pelo contrário, continuava a inventar-se e a celebrar-se nas pequenas coisas da vida, opostamente a mim. A minha existência não tinha presente nem futuro, apenas passado. Por isso, esforçava-me a viver os meus dias nessas recordações que me mantiam são e me carregavam pelos anos sem fim.
No dia seguinte voltei a espreitar para a janela por volta da mesma hora em que a tinha encontrado. Voltei a encontrá-la, o tempo pareceu abrandar novamente à medida que os seus passos se sucediam. Passou por um pequeno grupo de pombos que pousaram na rua e que pareciam não se incomodar com a sua passagem. A perfeição é assim, é tão completa que se torna sorrateira e invisível a quem não a procura.
Deixei de a ver novamente. Encostei-me na cadeira e adormeci calmamente em paz.
Passaram então meses inteiros assim: todos os dias à mesma hora espreitava por entre a janela para a ver passar. Todos os dias a deixava entrar no meu mundo no qual só ela existia e onde ela própria se tornava no meu universo pessoal, no meu tudo.
E aproximava-se o fim do Inverno. Algo estranho me ecoava na cabeça durante esses últimos dias, algo incómodo e barulhento como se uma tempestade rebentasse na minha mente. Mas no último dia de Inverno a tempestade acalmou. Foi substituída por algo muito mais grave e assustador: a certeza. Sem saber bem porquê, senti que aquele seria o último dia em que os meus insaciáveis olhos visitariam o seu corpo. Não compreendia como nem porque me atormentava aquela ideia, mas simplesmente sabia-o.
Exausto e confuso sentei-me várias horas antes do habitual na cadeira de baloiço e adormeci. Quando acordei olhei sobressaltado para o meu relógio de pulso e fiz uma terrível descoberta: já tinham passado vários minutos da hora em que ela costumava passar. Desolado, afundei-me na cadeira e uma teimosa lágrima escorreu-me pela face. Foi então que olhei para a janela e reconheci o inquietante brilho do seu cabelo. O vidro estava embaciado mas reconheci imediatamente a sua forma. Estranhamente não limpei o vidro pois achava que por alguma razão que me era alheia eu não o devesse fazer. E lá estava ela, parada como nunca tinha estado antes. Parecia que olhava na minha direcção mas não pude confirmar isso. Deixou-se estar assim por uns minutos e partiu. E assim foi, por detrás de um vidro embaciado, a última vez que eu a veria. A sua figura desfocada seria a última que lhe conheci, tornando-se na minha preferida e juntando-se às recordações que tinha da altura em que verdadeiramente vivi.
4 comentários:
Belo texto, transmite perfeitamente o clima pretendido (eu acho). Seu blog tb está em minha bookmark agora (y).
Gostei imenso da tua página.Muito sinceramente acho que podes fazer futuro com todas as tuas virtudes.desejo-te as mais sinceras felicidades.Parabéns pelo blog,tá excelente.Beijinhos
Adoro a maneira como escreves!
"Foi substituída por algo muito mais grave e assustador: a certeza."
e é esta a afirmação que me faltava ouvir para consumar os inúmeros sentimentos que me têm consumido..tu encontraste-a!! Adorei o texto...retrata bem as quimeras que nos movem, as tendências que desenvolvemos dentro da nossa mente, como que um hábito, a que mais tarde ousamos chamar amor!!!
Belíssimo texto..gostei muito!Parabéns, uma vez mais!
Congratulações Bloguistas***
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