sexta-feira, outubro 07, 2005

A confissão de um ex-apaixonado

Percorri a casa inteira, palmilhando todas as suas divisões, procurando não sei o quê. Ela ainda não regressara, e eu encontrava-me bastante nervoso. Talvez por isso não conseguisse ficar quieto, mas tentava não pensar no assunto. Preferi recordar outros tempos, outras harmonias… Na parede do quarto deparei-me com uma bela pintura (feita por um amigo pintor, um comparsa barato e habilidoso mas, infelizmente, falecido) de mim mesmo, mas quarenta anos mais novo. O quadro expunha um fogoso jovem de peito erguido, a segurar o cano de uma espingarda na mão, que estava apoiada no chão. E aqueles olhos… Tanta paixão, tanta determinação, tanto sonho…

Mas, despertado pelo tocar do relógio de cuco, que marcava as seis da tarde, voltei à realidade. Deparei-me com uma arma na mão, uma espingarda não muito diferente daquela que se via no quadro, um corpo cansado e uma mente exausta. Abri o guarda-fato, para me poder observar ao espelho, que é o que faço quando quero reflectir. O velho homem arqueado da dimensão paralela com pouco e curto cabelo branco, demasiadas rugas e olhos azuis e mortos dizia-me para seguir em frente. Está bem, porque não? Tenho setenta e cinco anos, aquilo que podia ter vivido já não viverei daqui por diante, por isso, porque não fazê-lo?

O meu dilema era bem plausível: ela ou eu? Seja como for, teria de escolher depressa pois Gina já não demoraria a chegar do supermercado. Ela, dez anos mais nova do que eu, pertencia a um outro mundo: o dela. No qual eu, errada e pateticamente, caí. A nossa história de vida é bem simples e chata: eu, filho de caçador e de uma empregada de limpeza que morreu ao dar-me à luz, era bastante activo e fogoso, o que me leva a pensar que realmente saí ao meu pai. Por isso, decidi também tornar-me caçador. Achava que a minha vida era perfeita, até uma certa altura, em que decidi que devia constituir família. Claro está que a minha existência perfeita caiu em puro desaparecimento. A pessoa com que me decidi juntar (Gina, última pétala da flor morta que era a minha vida) era filha de pais abastados. Não colocaram, no entanto, qualquer entrave ao meu casamento com a sua filha (a qual, por acaso, conheci três meses antes do casamento numa feira popular que ardeu dois dias depois de nos termos conhecido). Após o casamento, Gina veio até mim e enviou-me o seu pai que me propôs um lugar de na sua empresa, como seu ajudante pessoal. E pronto, o activo e fogoso jovem de antes deixara de existir, através de vinte anos como ajudante pessoal dos chefes (primeiro do pai de Gina, depois do seu irmão, após a morte do meu velho sogro).

Mas verdade seja dita, esses vinte e cinco anos, embora tristes e enfadonhos, não foram piores que os quinze anos seguintes. Nunca em ponto algum os anos que passei a trabalhar para a empresa atingiram níveis de interesse tão baixos como a melancolia dos meus últimos quinze anos de vida. Gina, outrora o azul oceano dos meus olhos, era agora o escuro céu de uma noite de tempestade, que me levava a vaguear sem qualquer ponto de embarque à vista no turbulento mar da vida. Tudo nela me incomodava: a maneira como falava, arrastando teimosamente os “r”, a maneira como andava, trocando as pernas de modo a demonstrar o seu pesado e feio traseiro, a maneira como me olhava, desprezivelmente, os livros que lia, o número de horas que passava na igreja, o dinheiro abundante que gastava, os lábios secos e enormes com que me dava um obrigado beijo de bons-dias, as roupas tristes e com horríveis padrões de flores, enfim, tudo!

Como, - pensava eu - como aguentei eu isto tudo tanto tempo? Afastei estes pensamentos e olhei para o tal relógio de cuco: já passavam vinte e dois minutos das seis da tarde, o que era estranho pois Gina costumava chegar mais cedo a casa (Deus meu, ainda podia chegar atrasada à missa, que horror…). Mas aquilo que me matutava na mente é que por esta altura ainda não me tinha decidido.

As minhas duas possíveis escolhas eram óbvias, o motivo é que não. Na verdade, debatia-me por saber se deveria matá-la ou se deveria suicidar-me. Dar-lhe um tiro e passar o resto da vida a descansar na prisão ou acabar de vez comigo?

Mas porque quero eu fazer isto? – esta era a pergunta que muita vez me surgiu durante os meus dias, pelos menos em todos os dias dos últimos cinco anos. A realidade é que nunca consegui perceber o que odiava tanto nela para chegar ao ponte de a querer matar. Acho que eram, em última análise, o resultado das muitas pequenas coisas que odiava nela, essas pequenas coisas que constituem uma vida.

Um último olhar ao relógio: seis horas e trinta e quatro minutos da tarde. Era agora ou nunca, tinha de decidir já. Portanto, desci as escadas e sentei-me no sofá a olhar para a porta à sua espera. Tinha tomado a minha decisão: queria acabar com ela. Percorri a sala com o olhar e pude ler, por cima da porta, uma inscrição em azul que Gina lá tinha colocado: “Abençoai Senhor a minha casa, tal como todos aqueles que nela habitam.” Irónico, pensei eu.

Ocorreu-me então um pensamento repentino, algo que me fez repensar a minha decisão. E se, por uns instantes, eu considerasse deixá-la viva? Suicidava-me, levando-a a um mundo de solidão e melancolia. Deixando-a provar um pouco do seu próprio veneno, provocando-lhe um resto de vida lento e agonizante. Afinal, o facto de me suicidar levaria todos a pensar que ela não me teria tratado condignamente (sim, era este o tipo de raciocínio do pequeno círculo de pessoas que nos rodeavam). Sim, é isso, ela nunca aguentaria ser vista como uma viúva triste que maltratava o marido.

E assim, em êxtase e sarcasticamente alegre com um sorriso que enchia todas as feições da minha bafienta cara, enfiei a espingarda na boca e premi o gatilho, resultando num enorme estrondo e num desagradável banho de vermelho para o meu confortável sofá.

Depois do fatídico momento, o silêncio instalou-se por toda a casa. Lá fora, os pássaros regressavam às árvores depois do susto que apanharam com o tiro. Mais adiante, uma grande confusão tinha-se instalado pela avenida, onde repousava morto o corpo de Gina, resultado de um acidente de viação. Mais à frente, no fim da rua, a voz de um comentador saía de um pequeno rádio cinzento colocado no parapeito de uma janela. Anunciava uma música de Santana, de onde se ouvia:

“Esa mujer,

Me esta matando

Me a espinado el corazon”

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